Créditos da imagem: Fernando Roberto/LANCE
Uma das melhores histórias de Asterix é “A Cizânia”. Aquela em que César manda à Gália um criador de discórdias chamado Tulius Detritus. O prodígio da maledicência escapou de uma execução porque os leões, ao avistá-lo, devoraram-se uns aos outros. Em questão de dias, Detritus consegue provocar até uma briga entre o protagonista e Obelix. Claro que Asterix foi mais esperto no final, mas o fato é que a poção mágica segue uma fantasia dos quadrinhos. O talento para criar cizânias, por sua vez, foi bem desenvolvido na vida real. Especialmente quando traz vantagens financeiras ou a sensação de superioridade moral.
A telecomunicação brasileira (incluindo internet) não vive sem criar uma polêmica a cada cinco horas – num dia pouco inspirado. Quando Pelé faleceu, já se ensaiou a clássica divisão entre ele e “o Edson” para mexer com suas escolhas fora das quatro linhas. A gigantesca consternação mundial e algum senso de ridículo abortaram a iniciativa. Mas não desistiram. Ficaram à espreita até encontrarem o pelo em ovo perfeito. Constataram que apenas um campeão de 1994 (por motivos funcionais) e nenhum de 2002 compareceu ao velório, no dia 2 de janeiro, na Vila Belmiro. Incluindo o “garoto rico que só ganhou a Bola de Ouro por ser branco”, segundo a mais preconceituosa dos autoproclamados inimigos do preconceito. Não interessa que ex-jogadores de outras épocas tampouco foram ao local. Não seriam alvos convenientes à causa – e à vingança.
Com um microfone na mão ou na lapela, hoje qualquer um está sujeito a infelicidades perante o mundo. Foi o caso de Kaká, numa transmissão internacional durante a Copa. A frase sobre Ronaldo ser visto por brasileiros como apenas um gordo na rua foi uma hipérbole para dizer que nossos ídolos são tratados melhor fora do país. Oras, é normal que ídolos sejam muito mais questionados em seus países. Bastava olhar para o povo vizinho e os heróis de sua seleção, agora campeã mundial. Além de tudo o que falaram de Messi, já teve comentarista implorando para nunca mais convocarem Di Maria. Não há dúvidas de que Kaká foi infeliz e merece respostas sobre o quanto seu pensamento foi mal expresso e mal elaborado. Mas, seguindo apenas a linha argumentativa, o assunto acabaria em horas. O cultivador de cizânias quer semanas. Ou meses. Ou o cancelamento.
Fez-se a narrativa: se Kaká e os outros penta ou tetracampeões têm alguma reclamação quanto a reconhecimento, teriam a obrigação de comparecer ao velório de um ídolo maior que eles. Personagens mais novos ou mais antigos, incluindo colegas da Copa de 1970, não foram cobrados por suas ausências. Nem a suposta rainha e “maior artilheira da seleção” – só se for do lacre. Tampouco se podia reclamar dos que fizeram as críticas a faltantes, mas seguiram longe da Baixada Santista. Aí podia até alegar razão emocional e tudo bem. O benefício da dúvida é bastante seletivo para os magistrados da discórdia. Não raro com o voto entre agravantes ou atenuantes. Porém, está longe de se resumir a uma questão ideológica. É da conta, financeiramente falando, de quase todos os que ganham a vida falando do futebol – não necessariamente de futebol, bem entendido.
Percebendo que o curso das águas não daria chance a ponderações, tais como considerar dificuldades logísticas (nem todos contam com transporte oficial), a maioria dos veículos midiáticos se reveza numa série emocionante de performances escandalizadas. Quanto maior o histrionismo, melhor o faturamento. Como a concorrência é pesada, alguns decidiram ser mais ousados e trouxeram outro alvo de costume ao banco dos réus. Isso mesmo: aquele que atende pela graça de Neymar Jr. Se não puderam detonar o ex-santista por ter mandado o pai em seu lugar, já que o PSG oficialmente vetou a viagem ao Brasil, logo acharam uma alternativa de efeito. Imagens do atleta num pagode bastaram para taxá-lo como insensível, ousando sorrir e cantar num dia de autoflagelação compulsória. Temos que reconhecer: perto deles, Detritus é só uma Dona Concheta*.
Então quem deveria ser cobrado? Absolutamente ninguém. Não é preciso ser um tremendo entendedor para perceber o óbvio: Pelé escolheu ser velado por Santos e pelo Santos. Se esta foi sua vontade (e foi), a ausência de quem não faz parte deste círculo não o incomodaria vivo, quanto mais em outro plano. Este é o ponto mais patético da cizânia que abriu 2023. No lugar de cada um cuidar da sua vida, prefere se considerar ofendido no lugar do próprio defunto. É isso que nem Pelé, nem Edson mereciam em suas despedidas.
*serei acusado de sexismo por esta frase?