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Qual o significado de ser um Atleta? Ao decidir buscar a resposta desta pergunta no dicionário, entenderíamos que um atleta é aquele que pratica atletismo, é robusto, era lutador nos jogos antigos ou um campeão que defende valorosamente uma causa. Para a etimologia da palavra – originária do latim athleta, que por sua vez vem do termo grego athletes (derivado da palavra athlein [“competir por um prêmio”], que foi criada a partir das palavras athlos [disputa] e athlon [prêmio]) – trata-se de um léxico produzido para designar os competidores dos jogos na Antiguidade Clássica. Com isso ainda não seria possível compreender com alguma precisão o que de fato é ser um atleta, tendo em vista o inquietante ponto de ser um jogador de futebol (que além de, obviamente, não praticar atletismo, necessariamente não é robusto, suas lutas são diferentes das do Coliseu e nem sempre defende uma causa que não seja o triunfo de sua própria agremiação) aquele que foi considerado o “Atleta do século XX”.
Avançar semanticamente para a conotação contemporânea da palavra atleta, que nos remete as palavras “desportista” e “esportista” (mais coloquial), ambas derivadas da palavra “esporte”, procurando em seu significado a razão de ser de um atleta, traz para a empreitada maiores chances de frutificação. A palavra esporte vem do inglês sport, que nasceu do francês antigo desport e significa “passatempo, recreação e prazer” – o que é ligado também ao verbo francês deporter (distrair-se, divertir-se e jogar) –. Atualmente entendemos como esporte o conjunto de atividades ou exercícios físicos (individuais ou coletivos) que obedece a regras precisas sob um fim pré-determinado, mesmo não sendo algo utilitário (o maior número de acertos de algum objeto em um alvo pré-estabelecido, por exemplo).
Desta maneira, já poderíamos interpretar que ser um atleta é ser um praticante de atividades e exercícios físicos, individuais e coletivos, condicionados por regras que são determinadas previamente sem um fim utilitário que não a recreação e o prazer, tanto de quem os pratica quanto de quem os assiste. A plausibilidade desta interpretação tem um pilar de sustentação na psicanálise freudiana, principalmente pelo seu conceito de maior envergadura, o “princípio de prazer-desprazer e o princípio de realidade”. Para Freud, o ser humano possui um aparelho pulsativo que o faz desejar infinitamente toda realidade externa como se fosse esta um objeto de extensão de si mesmo, do próprio corpo, o que, uma vez sequer colocada em prática tal tentativa, o mataria, seja pela esgotabilidade da energia finita que mantém o corpo vivo quando se pretende satisfazer os desejos por um prazer infinito, seja pelos traumas da impossibilidade de satisfazer tamanhos desejos na realidade, caracterizando assim o princípio de prazer-desprazer. O que nos impede de ir até a satisfação plena, e também impossível, dos desejos oriundos de pulsões produzidas em nossos instintos, que nos mataria, é a produção simbólica de socialização do corpo e da alma na cultura, através da moral, que nos indica durante o nosso desenvolvimento o que pode ser nosso objeto de desejo para o qual projetaremos as nossas pulsões a fim de obter prazer, de uma forma sem riscos à morte instantânea. É o que se conceitua como o princípio da realidade. Ora, o esporte é uma satisfação de desejos, é uma forma de se ter prazer, o que foi estabelecido por processos de socialização; atividades e exercícios que o nosso corpo é levado a fazer, ou dos corpos de quem assistimos, com a sanção moral das regras que os estabeleceram.
Portanto, o que é ser um atleta? Ser aquele que com o uso do corpo dentro de um conjunto de regras de recreação gera prazer para si, demais praticantes e para o público que o assiste? Se assim for, podemos dizer que o fato de Pelé ter sido considerado assim o atleta do século é porque foi aquele que mais gerou prazer no mundo durante o último Centeno com os movimentos do seu corpo dentro de atividades e exercícios físicos que são regrados na modalidade esportiva do “futebol”. Todavia, qual poderia ser a razão de ser justamente o futebol, entre inúmeras modalidades esportivas existentes na sociedade moderna, o esporte pelo qual emergiu o “atleta do século”? Hoje, há diversas evidências anedóticas de que o futebol é o esporte mais popular do planeta, mas fica a instigação de curiosidade sobre quando o mesmo adquiriu tamanho status de prestígio planetário. Para tentar dar alguma contribuição a tal conjectura, bancarei o palpiteiro sócio-antropólogo.
O futebol é uma arte que possui aquilo que Walter Benjamin chama de aura, isto é, uma tradição irreprodutível tecnicamente. Cada partida é uma história que jamais será plenamente copiada em qualquer outra no futuro. Os placares, vencedores, perdedores e agremiações envolvidas se repetem, mas a maneira que as suas epopeias são construídas tem seu espírito único. Quase todos os outros esportes podem aparentar ter as mesmas características, contudo, o futebol não consegue ser, como os outros esportes, reduzidos a números ou fundamentos, o futebol é o esporte em que o ponderável é a existência das situações imponderáveis. Uma mística que não escolhe competências por características físicas ou por hierarquias de casta, classe, burocracia, oligarquia, estamento, etnia e nem mesmo repertório simbólico como distinção social entre subgrupos e segmentos que ao alcançar determinadas posições se tornam uma elite. Trata-se de um universo paralelo que possui realidade, natureza e códigos próprios adaptáveis a qualquer outro mundo e seus indivíduos, capaz de fazê-los, em situações de jogo, mudar a sua própria condição de reconhecimento social – que antes, fora das quatro linhas, fazia parte de uma posição dominada na hierarquia da estrutura social –, como quando fez de um negro, oriundo de onde negros só eram escravos e marginalizados, um rei.
Quem vive o futebol passa por um ritual religioso de “liminaridade”. Como dizia o antropólogo Victor Tuner sobre os povos nmembos, podemos entender que o futebol é uma transição gerada pelo “poder do fraco”, um sofrimento que destrói a hierarquia pré-existente entre os seus agentes, fazendo todos viverem durante a situação do jogo como iguais. Um “ritual de passagem pelo sofrimento de jogadores e torcedores”, os tornando iguais (communitas) durante o jogo, independente de identidade ou posição hierárquica na estrutura social que cada um ali envolvido voltará a ocupar. Ou como Pierre Clastres e Marshall Sahlins, sobre os índios Guarani – que usam as escarificações para estampar sua lei na própria pele, junto ao mito da “terra sem males”, que os levam a uma jornada contra a concentração de poder político do chefe – e sobre tribos da melanésia que usam o chamado modo de produção doméstica contra a produção desnecessária de excedentes que gerem concentração de riquezas, respectivamente, nós podemos imaginar que há no futebol alguns processos contra o que poderíamos chamar como “concentração de poder futebolístico”, o que, definitivamente, traria risco a toda sua mágica intrínseca.
Quem vive no futebol adquire uma segunda existência, preenchendo identidades não reconhecidas no convívio padrão. Adquire assim outra personalidade, outros papéis sociais, outra cultura, religião, família e nação. As cores, da pele e do sangue, passam a ser as cores do time do coração, a sua camisa oficial o seu uniforme, no escudo do peito quase que um brasão de família, e no seu hino uma segunda nação. Talvez o futebol seja assim porque é irônico consigo mesmo. Os outros esportes tem a garantia de vitória para o atleta (s) que melhor executar os fundamentos necessários ao funcionamento do jogo. Para o futebol tal certeza não existe, é uma espécie de “esporte do fraco e do oprimido” por excelência, em todos os sentidos, começando a partir dos seus próprios tipos de fundamento técnico.
A superstição se manifesta dentro da prática futebolística, talvez, por ser o esporte mais praticado no Brasil. A própria regra já favorece essa associação, uma vez que o futebol é um esporte praticado com os pés, e isso facilita e muito os resultados imprecisos, pois nem sempre o melhor time ou o que joga melhor vence. (Frederico Machado, 2010).
Contudo, podemos dizer que o futebol do século XXI mantém o legado de magia criado pelos pés de tantos atletas consagrados, entre eles (o maior de todos) o atleta do século XX? Se fizermos uma lista simples, com alguns nomes de jogadores de futebol do século XX: Friedenreich, Fausto, Leônidas, Puskas, Romeu, Zizinho, Heleno, Didi, Ademir, Beckenbauer, Danilo, Nílton Santos, Domingos da Guia, Tim, Garrincha, Pelé, Di Stefano, Eusébio, Gérson, Rivelino, Tostão, Cruyff, Platini, Maradona, Falcão, Zico, Romário, Ronaldo e Zidane; poderíamos traçar um paralelo qualitativo (de comparação) com os principais atletas do nosso século: Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Suárez, Iniesta, Xavi, Neuer, Muller, etc? Por mais que haja a tentativa de torcedores dos clubes de sucesso mais recente na história do futebol desqualificarem a qualidade que o futebol antes era praticado, para deslegitimar o sucesso histórico de clubes rivais, o consenso de que o futebol era melhor no passado do que hoje, que os atletas de antes eram melhores e possuíam um futebol mais agradável do que os atuais, é considerável. Apesar disso, os números de remuneração dos atletas e todo o sistema que move esse esporte se expande exponencialmente. É como um aumento inversamente proporcional, conforme diminui a qualidade média do espetáculo futebolístico aumenta o capital necessário para continuar funcionando.
Por que tem sido este o caminho do futebol na história?
Com a popularidade global adquirida no decorrer do século XX, o futebol torna-se uma oportunidade para articulações dissidentes dos seus propósitos diretos, o que até então criava esta magia do “imponderável como regra”. Seu poder de “encantamento” atraiu olhares cobiçosos das elites econômicas, políticas e comunicacionais. Portanto, o futebol passou a ser utilizado como indústria cultural por meio dos grandes capitais, dos veículos de comunicação de massa e também dos governos.
Para Adorno, o esporte seria um instrumento educativo poderoso, capaz de evitar uma histeria social como o ódio de uma subjetividade ariana projetada nos judeus – seu objeto externo que recebe a vingança de suas frustrações (horrores de Auschwitz). Mas, o mesmo esporte, conforme a sua popularidade cresce, tem a sua função de projeção dos sentimentos que não puderam ser controlados no cotidiano (produzindo uma disciplina e repreendendo a agressividade e a perversão) invertida, o jogo passa a ser projetado na realidade social (quando era para a realidade social ser projetada no jogo) para alívio de tensões que as frustrações do dia a dia nos ocasionam, tornando-se mero business, como podemos perceber nas citações abaixo.
“[Com a profissionalização do futebol] Aparece o produto dos sonhos do sistema capitalista. Por quê? Futebol é paixão e o torcedor não vive sem ele. Nosso folclore aponta vários casos em que chefes de família mais humildes deixam de comprar até leite para seus filhos para poder assistir a uma partida final de campeonato.”
“Se um jogo de futebol for tratado como um bom produto, ele não terá substituto para o torcedor.”
“O futebol é o único caso [entre os inúmeros mercados existentes] em que o cliente é maltratado e volta sempre!”
“Não há fidelidade a produtos ou serviços em nenhuma outra indústria na proporção que existe no futebol.”
“Décadas atrás, se um elenco era imbatível, ganhava, no máximo, mais dinheiro com mais ingressos, porque mais gente estava interessada em ver os times em ação. Hoje, quem faz mais gols e fatura mais partidas aparece mais na TV, o que gera melhores contratos de patrocínio e merchandising.”
“A construção de um estádio leva em média dois ou três anos, já a compra de uma equipe inteira pode ser feita em uma semana. No entanto, alterar o número e a qualidade dos torcedores de um clube leva pelo menos uma geração.”
“Nas últimas três gerações, o mundo futebolístico reconhece que apenas um time teve uma importante transformação, passando de time “pequeno” para “grande”, arrebatando grande número de torcedores, inclusive com as raríssimas mudanças do clube do coração: o Santos Futebol Clube, de Pelé”.
(Antônio Carlos Kfouri Aidar e Evandro Jacóia Faulin)
As funções emocional e social do futebol foram degeneradas, os atletas e demais profissionais monetarizados, reduzidos a “atores da sociedade do espetáculo”. Os clubes foram abduzidos por administrações de burocracias oligárquicas, corretores das grandes corporações patrocinadoras, dos fornecedores de material esportivo, de grandes veículos de comunicação e das instituições de regulação do futebol (federações, confederações e a FIFA), além dos próprios Estados Nacionais onde acontece o esporte. A consequência deste cenário é que o futebol vem perdendo sua magia e qualidade técnica, enquanto os seus bastidores crescem exponencialmente para propagar toda a ilusão de um espetáculo pseudodesportivo na realidade social (fora do jogo). O método de proceder com tal tipo de transformação do futebol é o aumento da necessidade monetária para que ele ocorra, isto é, subordinando o esporte à lógica do dinheiro. E nada melhor para fazer isso que o atleta, o meio de produção vivo do futebol, seu instrumento e força de trabalho fundido em uma única matéria.
Quanto aumentou o salário dos jogadores de futebol nas últimas três décadas? O blog Achados Econômicos fez um levantamento a partir do acervo da “Folha” e constatou que o corintiano Sócrates tinha o maior salário do futebol brasileiro em 1980: Cr$ 1 milhão por mês (incluindo as luvas), o que equivaleria a R$ 115 mil em valores de hoje. Já Neymar chegou a receber 20 vezes mais do que isso no Santos (R$ 2,3 milhões). Ronaldinho Gaúcho tirou recentemente R$ 900 mil no Atlético-MG, oito vezes o salário de Sócrates. (Blog Achados Econômicos, Sílvio Guedes Crespo, 2013).
O futebol se tornou uma mercadoria, e como toda mercadoria é trazida até a vida pela relação entre outras mercadorias, especificamente as que existem para transformar a natureza através do trabalho humano (que também é natureza) em algo que satisfaça a um conjunto de necessidades e desejos ao mesmo tempo em que é comercializável. E as principais mercadorias responsáveis pela mercadoria final futebol, são os atletas. Com a superexposição da sua imagem, os futebolistas adquirem a aparência de grandes ídolos (com um status social potencial), se tornam assim formadores de opinião e criadores de tendência para o consumo na vida social cotidiana dos torcedores. Além disso, os atletas do futebol, pelo seu poder de gerar negócios fora de campo, são supervalorizados mais pela aparência socialmente produzida de craque do que pela totalidade das suas aptidões técnicas para a modalidade. O preço de remuneração do seu novo tipo de imagem já traz aos atletas um gozo de grande satisfação, pois são levados até posições de destaque na estrutura social, onde possuem seguridade e luxo econômicos, além de prestígio social da moda de sua geração. Não obstante, este fenômeno tem como consequência a queda, por parte dos próprios jogadores também, do gozo no prestígio restritamente esportivo, isto é, da vontade de praticar o futebol pelo futebol, da sua independência do mundo que existe fora do futebol para atingir no futebol cada vez mais uma melhor performance – ter o objetivo de performance e não de enriquecimento no futebol. É por esta razão que cada vez menos nós vemos algum atleta que queira fazer toda a sua carreira num único clube, e que tem o objetivo de fazer esse clube ganhar tudo o que for possível com a sua participação. Tudo o que vemos são atletas cada vez mais jovens, assim que começam a despontar nas categorias de base, almejando ir jogar em clubes europeus para lá adquirir mais status social, o que leva ao menosprezo da história e tradição dos grandes clubes da América do Sul.
Nessa conjuntura, o athletes (“competir por um prêmio”) se distancia cada vez mais do desport (“passatempo, recreação e prazer”), tendo em vista que o prazer de cada torcedor diminui com o decréscimo técnico-esportivo do espetáculo futebolístico.
Esta arte esportiva que era o futebol tem sido transformada na calculabilidade cientificista e administrativa de fundamentos, tática e números, enquanto o inenarrável do passado se transforma com o passar do tempo numa lenda que logo poderá ser esquecida. Sinto em dizer que uma das maiores paixões mundiais contemporâneas tem perdido a esperança de nos representear com a mágica de mais um “atleta do século” a cada novo recorde de cifra milionária que é quebrado na contratação de um jogador.
Sendo assim, se não tiver mais jeito, eu votaria no Bolt para o atleta do século XXI até aqui e vocês?
Tomara que sim! E o Usain Bolt realmente foi uma ótima lembrança, ele parece uma máquina imbatível. Mas poderia ser também o Federer, o Nadal ou o Djokovic (que geração do tênis!!!), o Messi (sim, falta a Copa, mas…)… E TANTOS OUTROS de outras modalidades… Aí é questão de gosto mesmo! Sem falar que não vai demorar para o Neymar entrar nessa briga também! 😉
Tenho aprendido com meu pai a apreciar o bom tênis. Minha primeira lembrança do esporte foi na época de Guga, Andre Agassi e Pete Sampras. E, mesmo tendo sido esta primeira lembrança de uma verdadeira constelação de jogadores espetaculares, essa geração atual que você mencionou é ainda melhor, inacreditavelmente. Por questões de simpatia com o jeito de jogar e com a pessoa, eu tenho preferências pelo atleta Roger Federer, mas hoje o Djokovic está, para não dizer muito, consideravelmente a frente.
Contudo, acho impossível esquecer a Serena Willians, ela poderia ser a atleta do século também, adoro o talento dela jogar tênis.
Sim, e o mais legal é que os três parecem ser ótimas pessoas também. Simples, nada afetados, conscientes. Quanto ao Federer, ele é simplesmente o maior jogador de tênis da história. Joga fácil demais. =D
o Messi !
o Messi.