Créditos da imagem: Mariana Bazo/Reuters
Como os leitores que veem os créditos do site sabem, sou juiz de Direito nas horas vagas (rs). A pedido dos colegas colunistas, faço uma breve análise da suspensão do atacante Guerrero, do Flamengo e da seleção peruana, com base nas normas que antecedem o caso, sobre as quais todos os envolvidos sempre estiveram cientes. Evidentemente, não trabalho na Justiça Desportiva. Porém, quinze anos de prática na magistratura são suficientes para que, mesmo vindo de outra área, consiga enxergar os fatos dentro do ordenamento aplicável. Vamos lá:
1 – primeiramente, deve-se considerar que as substâncias dopantes (aquelas com potencial de aumentar a performance esportiva) são parte do rol de substâncias proibidas, mas este rol não se esgota naquelas. Nem toda substância é vedada por alterar perigosamente o nível de atuação do atleta. Algumas entram na lista porque dificultam a constatação das demais. Outras integram a relação por outras razões que as autoridades consideraram relevantes para suas finalidades, esportivas ou extra-esportivas. Incluindo, pois sim, a imagem positiva do atleta perante o meio social – que também interessa economicamente.
2 – feita esta distinção, observa-se que em trecho algum a regulamentação estabelece distinção punitiva em função da substância flagrada e sua finalidade. Neste contexto, por mais que as pessoas adorem debater conforme a regra que elas próprias criariam (vide o insuportável caso Lusa em 2013, quando o clube paulista foi corretamente punido conforme o regulamento e sua própria incompetência), não existe diversidade normativa nem entre as substâncias, nem entre as finalidades das proibições. Portanto, não cabe ao julgador criar diferenciações, seja para aumento ou diminuição de penalidade.
3 – tampouco está prevista a distinção entre dolo ou culpa no uso da substância na mensuração da pena. Não se trata de lapso do regulamento, e sim intenção clara de quem o elaborou. Do contrário, ante diversos casos casos de contaminação por remédios gripais e outras formas acidentais, já teriam alterado a suposta lacuna há muito tempo. Uma vez inexistente a previsão, também é vedado ao julgador utilizar a diferença como fundamento para punição superior ou inferior, mesmo em grau mínimo de culpa. Pode-se questionar se é a forma ideal de lidar com o tema, mas é um caminho consciente e todos os atletas sabem – ou devem saber – disso.
4 – sob tal cenário severo, a única maneira de evitar a punição é afastar por completo até a culpa mais leve. Significa excluir a obrigatoriedade de conduta preventiva do atleta. Foi o que, em 1992, impediu que os jogadores Zetti (seleção brasileira) e Rimba (seleção boliviana) fossem punidos pelo uso de chá de folha de coca. Naquele tempo, até pelo baixo número de partidas internacionais na altitude, não se tinha noção de que a popular beberagem poderia causar exames positivos. O problema é que, depois daquele caso, todos ficaram conhecendo a possibilidade e, assim, situações futuras não puderam mais ser agraciadas pela exclusão da culpa.
5 – o caso de Guerrero é diferente daquele de Bolívia x Brasil, porque o jogador alegou não saber que o chá era de coca. Afirmou que, num primeiro momento, tomou chá de anis em sachê. Em momento posterior, ainda nas dependências da concentração, teria tomado chá contido em bule e seria este o que conteria a coca. Foi este o ponto que o TAS usou para não retirar totalmente a culpa. Considerou que o jogador deveria ter indagado o conteúdo antes de beber. A defesa alega que, por estar sob a responsabilidade da federação peruana, o atleta confiou plenamente nesta e não seria obrigado a conduta diversa. Porém, prevaleceu o princípio pelo qual o atleta é pessoalmente responsável por tudo o que ingere, mesmo fornecido pela agremiação esportiva, salvo composição efetiva diversa do conteúdo descrito na embalagem fechada.
Por este resumo, não vislumbro injustiça dentro das normas e julgamentos preexistentes. Só poderia haver exclusão se a substância proibida estivesse no chá consumido com sachê, pois sua fórmula oficial seria outra, a exemplo das contaminações cruzadas que livraram a barra de César Cielo e outros – nos quais, registre-se, o consumo e a fórmula haviam sido previamente informados em relação aos exames. As regras são duras e beiram a insensibilidade, mas foram estabelecidas e aceitas por responsáveis e componentes das relações esportivas. É uma situação triste para descuido tão relativamente simples e inofensivo. Triste, porém justa.
EXCELENTE.
Dá pena que vai perder bem a copa, mas vacilou feio, tem que ser suspenso mesmo!!!!!!! Muito mais triste ia ser o futebol começar a ter um monte de gente dopada e sem punição!!!!!!!!!!!!
Justa não foi. Pode estar previsto por legislação, mas não foi justa. Duvido que se Guerrero fosse italiano, sua pena teria sido tão grande.
Neste caso, injusta seria a do italiano. E falar em cima de hipótese com ares de certeza é uma forma de nunca perder uma discussão, não é mesmo?
É impressionante como a “ideologia do coitadismo” consegue ser popular nos mais variados ambientes…
Já vimos até o Ben Johnson (então recordista mundial nos 100 metros) e o Lance Armstrong (então considerado, talvez, o melhor ciclista da história), além do Maradona (na Copa de 94) serem punidos por dopping, mas o importante é falar que isso acontece com o Guerrero só “por ser peruano”…
Não se trata de coitadismo. A FIFA é regida por europeus, tanto é que essa semana foi confessado que houve manipulação nos sorteios da Copa de 98. E não sou apenas eu quem considera injusta a desproporcional punição, tanto é que a FIFpro pediu revisão da pena. Mas foda-se a lógica, vamos chamar os outros de vitimistas.
Que atleta europeu, na mesma situação, teve pena diferente? Fácil criar uma hipótese e ainda enfiar um “foda-se” pra mostrar o quão respeitoso é num debate. Fiz uma análise de acordo com as normas cabíveis. Como disse, se houvesse uma injustiça, seria no caso de qualquer outro jogador que tivesse tratamento mais brando. Porque ser justo não é a mesma coisa que ser gentil. As normas sobre substâncias proibidas são duras e adotam um critério que eu não adotaria. Fosse eu o responsável por elas, haveria uma distinção entre dolo e culpa. Mas eu não sou o responsável por elas, nem as pessoas que as aplicam. Pior que o vitimismo é o hábito de questionar decisões com base na norma que a pessoa criaria, em vez da existente.
complementando: o TAS não é da FIFA. Portanto, não estaria sob o domínio “europeu”. Portanto, já que não é pra f… a lógica, vamos considerar este detalhe.
Até que enfim um artigo esclarecedor sobre o assunto. Parabéns!