Créditos da imagem: Montagem / No Ângulo
A sociedade brasileira anda cada vez mais doente. Embora isso seja costumeiramente diagnosticado na política, ainda mais com eventos inconcebíveis como o ataque na semana passada em Brasília, já deveria estar claro que chega a todos os campos. Só nesta primeira quinzena de ano, vimos mostras nos funerais de Pelé e Roberto Dinamite, além da inacreditável vergonha da torcida do Flamengo cantar contra o Atleta do Século enquanto ele recebia homenagem póstuma.
A cobertura da mídia vinha sendo praticamente irrepreensível no adeus ao Rei do Futebol, dando o espaço merecido e mostrando aos mais jovens a magnitude de Pelé. Mas com o passar do luto, a atual coqueluche de apontar o dedo para os outros e julgar publicamente, sem nenhum pudor, voltou com tudo.
Pelé morreu a dois dias do Réveillon, quando muitos estão viajando e já definiram programação com família e amigos. No domingo, 1 de janeiro, já iria acontecer a posse do novo presidente, Lula, um evento da maior importância, ainda mais após eleições tão acirradas e que levaram mais pessoas às urnas do que nunca. Para completar, Santos não é uma grande metrópole, não conta com aeroporto e as estradas que a ligam à capital paulista ficam frequentemente congestionadas na virada do ano. Era um contexto especialmente ruim para uma despedida à altura do maior jogador da história.
Desde o anúncio, lamentei pelo velório ocorrer só em Santos. Pelé se despediu da Seleção Brasileira com amistosos em São Paulo e no Rio de Janeiro, e do Santos na Vila Belmiro. Se o funeral de Tancredo Neves foi grandioso a ponto de passar por várias cidades, o daquele que tantos entendem ser o maior brasileiro de todos os tempos também deveria. No mínimo em São Paulo – cidade na qual ele faleceu e sempre foi muito ativo – penso que seria obrigatório haver um dia de velório na Assembleia Legislativa ou Pacaembu, antes de o corpo seguir para Santos e ser velado e sepultado como programado. Conferiria um caráter mais nacional e grandioso à morte de uma das pessoas mais famosas da história. Se 230 mil pessoas passaram pela cerimônia em 24 horas em Santos, quantas teriam passado em megacidades como São Paulo e Rio?
Mas ao fim do funeral, a polêmica passou a ser sobre as ausências no velório do Rei. O curioso – mas não surpreendente – foi a ênfase aos jogadores do Tetra, do Penta e Neymar.
A politização tem tomado conta de tudo e determinado o posicionamento geral de cada vez mais pessoas e setores da sociedade. Nesse tenebroso esquema, as últimas décadas reservam um papel negativo aos jogadores de futebol: alienados e mimados, ganham muito e estão apartados do povo, vivendo em bolhas nas quais são os maiorais. São usados como contraponto negativo desde “é absurdo jogador ganhar tanto enquanto o professor recebe tão pouco”, até questões de igualdade sexual, com seus salários sendo comparados aos das jogadoras de futebol. Dentro desse estigma, os últimos anos levaram a patrulha a um grau ainda pior, seja pela utilização da camisa da Seleção Brasileira na oposição ao PT, seja pelo apoio público de jogadores como Neymar e Daniel Alves, entre muitos outros, ao ex-presidente Jair Bolsonaro em sua fracassada tentativa de reeleição.
Com sanha persecutória, muitos jornalistas começaram a cobrar os suspeitos de sempre pela ausência. Neymar deveria sair de Paris a Santos, mesmo com o PSG jogando quatro dias depois, afinal, “bastava pegar um jatinho”; felizmente, ex-companheiros do Tri, como Gerson, Rivellino e Tostão não foram apontados por não terem ido. Ronaldo, Cafu e Rivaldo foram criticados por suas justificativas, mas os alinhados Raí e Juninho Pernambucano não precisaram se explicar por nada. A “Rainha Marta” não foi intimada. As cobranças eram seletivas, para o melhor do mundo “que era superestimado por ser branco” ou aquele que chegou a gerar comemorações quando se lesionou durante a Copa. É incrível, mas chegaram a ser feitas por pessoas que sequer foram ao funeral! Por que Cafu teria a obrigação de ir à Vila e Casagrande – que disputou a Copa do Mundo de 1986 pela Seleção – não? Por que Tite deveria comparecer e Juca Kfouri não? E se é comum o entendimento de que jamais alguém representou tanto o Brasil, por que pessoas de fora do esporte também não deveriam ter ido? Jorge Ben Jor – que fez uma linda música para o maior jogador da história – não foi. Deveria receber dedo na cara? E Xuxa, ex-namorada de Pelé que se ausentou e ficou nas mídias sociais julgando se pessoas que foram ao velório estavam se portando bem?
Os tão implacáveis fiscais do luto alheio só tiveram olhos para Neymar e Kaká, que deixaram belas palavras para o Rei Pelé nas mídias sociais, mas não ponderaram nada sobre a mensagem deixada por Messi, a mais fria e protocolar possível. Afinal, Lionel é sempre um contraponto positivo ao “Peter Pan Neymar”, então o “descanse em paz @pele” não pode ser visto como ausência de qualquer enaltecimento ou carinho a Pelé (o que não tem absolutamente nada a ver com reconhecimento ou não como maior da história). Neymar soube enaltecer o legado de Maradona quando o ícone argentino se foi; já Messi, infelizmente, não teve a mesma grandeza na partida do Rei. Mas parece ser um tabu reconhecer isso.
Na semana seguinte, no adeus de outro grande personagem do nosso futebol, Roberto Dinamite, mais nomes relevantes do esporte estiveram presentes, o que deveria escancarar como a data e o local foram determinantes para muitas ausências no de Pelé. Mas em vez de se convencerem disso e simplesmente reservarem o momento para despedida e culto ao maior ídolo da história de um gigante como o Vasco da Gama, Cafu foi praticamente interrogado em pleno gramado de São Januário, com o corpo de Dinamite sendo velado ao fundo, e teve que explicar novamente sobre as ausências em Santos. Em vez de se enaltecer o maior artilheiro da história do Campeonato Brasileiro, seguimos presos ao ressentimento.
E para fechar do modo mais deprimente possível, a torcida do Flamengo cometeu a desonra de, em meio a uma homenagem a Pelé no telão do Maracanã, estádio do milésimo gol, gritar mentirosas ofensas contra ele para, supostamente, engrandecer Zico (outro que não foi atacado por não ir ao velório na Vila). A música era uma completa vergonha e ofendia também Maradona. Mas se já se espera o pior das torcidas em relação a qualquer rival, como era Diego, é inacreditável que brasileiros ataquem Pelé durante seu luto. O mesmo Pelé que em 1979 vestiu a camisa 10 rubro-negra e jogou ao lado do Galinho de Quintino num amistoso beneficente contra o Atlético Mineiro, cuja renda seria revertida para as vítimas de mais uma tragédia das chuvas em Minas Gerais. Felizmente o admirável Zico intercedeu com sucesso para que o asqueroso canto fosse alterado e a mancha não se tornasse ainda maior para o Mais Querido (fica até difícil se referir assim depois de algo tão baixo).
Em tempos nos quais tanto se fala em “amor” como uma palavra de ordem mais do que vazia, o célebre “Love! Love! Love!” de Pelé em sua despedida pelo Cosmos, imortalizado na música do genial Caetano Veloso (também“ausente do velório”, se o mundo for dividido assim), soa como um apelo desesperado. Segue a esperança de que venha a ser ouvido.