Créditos da imagem: Agência O Globo
Esqueçam os defensores mais carniceiros ou mais gabaritados – como Bobby Moore, já se aquecendo para enfrentá-lo de novo. Ninguém marcou o Rei do Futebol como este século. O destino, usualmente tão generoso, passou a lhe dar rasteiras e desarmá-lo seguidamente. Pouco visto em hospitais (salvo rotina), Pelé passou períodos progressivamente mais longos num deles. Foi lá que viu a que pode ser a última Copa digna dos grandes futebolistas, dos quais foi o maior – num tempo em que banda larga era apenas a velocidade da luz com que sua grandeza se propagava.
Desde que o século 20 pendurou as chuteiras, Pelé não teve vida fácil. Verdade que cometeu seus deslizes no futebol – porque aqueles eventualmente fora dele não nos cabe julgar. De cara, uma furada histórica ao se reconciliar com a cartolagem no lamentável “Pacto da Bola” – entre outras coisas, legitimando a infame Copa João Havelange (um de seus maiores desafetos). Logo ele, que no Ministério dos Esportes encerrara os anos 1990 com a libertadora Lei que levou seu nome. O projeto abraçou o que a Constituição determinara em 1988 e a FIFA, perante a sentença Bosman, forçosamente adotou. Fora do campo, foi seu gol de placa. Porém, mesmo depois do malfadado acordão, a Lei Pelé seguiu sendo a desculpa padrão, por parte de de dirigentes nocivos e seus amigos da imprensa, para a incompetência generalizada.
Tristeza mesmo Pelé sentiria ainda nos anos 2000, quando seu filho Edinho foi preso e condenado por crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes. O ex-goleiro passou anos encarcerado até o STF conceder decisão que o favoreceu. Paralelamente, antes presença óbvia na mídia e no mundo comercial*, perdeu espaço até no Brasil. Inclusive porque muitos campeões mundiais de 2002 não perdoaram sua previsão negativa sobre a seleção. Deveriam ter agradecido, pois sim. Pelé sempre foi um bola de lata em matéria de antever favoritos. Um apostador estrangeiro perdeu uma fortuna acreditando, em 1994, que a Colômbia realmente era uma das favoritas. Comentando jogos na televisão (pela Band e depois pela Globo), chamou mais a atenção por quase impedir Galvão de gritar “é teeeetraaaaa”. Sem querer, mas pena que ficou no quase…
Com os anos também corroendo parte de sua melhor visão dos fatos (como acontece com qualquer mortal), um possível erro médico lhe tirou a possibilidade de caminhar sem dor. Mesmo com todos os esforços em fisioterapia, não ficou apto a acender a pira olímpica nos Jogos de 2016. A partir daí, recolheu-se em sua casa. Uma das poucas aparições públicas foi no sorteio da Copa de 2018, na Rússia. Usando cadeira de rodas, recebeu um beijo na testa de Diego Maradona. O mesmo com o qual encerrara longa inimizade em 2005, trocando passes de cabeça com o falecido Pibe em seu programa televisivo, para delírio da plateia. Depois desse momento, só falou com os fãs nas redes sociais. E veio uma pandemia. E o adiamento do check up. E a descoberta (aparentemente tardia) do câncer. E o apito final.
Lamentemos, mas não esqueçamos que tudo estava escrito há mil anos, como diria Nelson Rodrigues. Sim, o primeiro a perceber seus traços monárquicos, tendo a bola como espada consagradora. Tais direitos de Majestade Suprema foram obtidos com feitos muito além dos números e conquistas espantosas. Nada contra debater se outro pode superá-lo. Patético é fazerem isso com desonestidade intelectual para relativizar o que foi, é e nunca deixará de ser. Como não se pode dar cartão vermelho para o tempo e suas entradas maldosas, Pelé fez o que um craque de sua magnitude faria: driblou-o para sair de seu encalço e brilhar na Eternidade.
*a marca Pelé, comenta-se, teria chegado a ser mais conhecida mundialmente que a Coca-Cola.