Créditos da imagem: Fotos Históricas das Copas
Brasil e a Dinamarca foram os únicos a vencer os três jogos na primeira fase. Com uma diferença: os escandinavos estavam no grupo da morte, com Alemanha, Escócia e Uruguai. Foram nove gols marcados e apenas um sofrido, em pênalti inexistente na vitória por 6 a 1 contra os uruguaios. Também se destacou a União Soviética, que ficou à frente da favorita França. Houve empate no confronto direto e os soviéticos levaram vantagem no saldo de gols, graças aos 6 a 0 contra a Hungria, afilhada do bloco comunista. Em outro grupo difícil, a Argentina empatou com a Itália (graças a um toque de classe de Maradona contra Galli) e pontuou mais os búlgaros. Pela chave brasileira, como esperado, a Espanha se recuperou da polêmica derrota inicial e ficou em segundo. Enfrentaria justamente a Dinamáquina nas oitavas. Foi quando a magia do conto de fadas virou abóbora.
O jogo começou como o esperado. Reeditando estilo similar ao carrossel holandês de 1974, a equipe de Sepp Piontek abriu o placar em pênalti batido pelo talentoso Jesper Olsen. Foi quando o baixinho dinamarquês pensou que caminhava sobre as águas e… afundou. Um erro terrível na saída de bola deixou Butragueño sem goleiro para empatar. O constrangimento viraria desilusão no segundo tempo, com mais três gols do centroavante e outro de Goycochea. Com a queda precoce da sensação, a atenção se voltou às demais seleções, em especial ao clássico sul-americano. Os retrancados uruguaios só cederam um gol à argentina numa assistência de seu próprio zagueiro a Pasculli. Nem os dribles e passes de Maradona venceram o bom goleiro Alves – que, acreditem, barrou o lendário Rodolfo Rodríguez. Seria a última vez que o capitão argentino não decidiria nas arenas mexicanas.
No dia 22 de junho, quando a torcida brasileira ainda chorava a eliminação, ocorreriam os noventa minutos que modificariam a ordem do futebol. Se não tivesse feito o que fez naquela tarde, Maradona ainda seria um dos melhores da Copa. Provavelmente, o melhor. Mas a partida contra a Inglaterra elevaria sua participação de muito boa a inenarrável. O camisa 10 infernizou a defesa inglesa como se quisesse ganhar sozinho a Guerra das Malvinas. Os britânicos resistiam ao poder de seus pés. Então Don Diego decidiu usar a mão. Uma trapaça para professor Sergio nenhum botar defeito. Antes da repetição, muitos espectadores e telespectadores (incluindo este que vos fala) acreditaram em seu súbito crescimento para bater o goleiro Shilton. O gol absurdamente ilegal tinha tudo para ser o assunto do dia, do mês e do ano. E teria sido, não fosse o que viria em mais quatro minutos.
Enfurecidos, os ingleses foram em dupla para tomar a bola do farsante. Apenas usando a perna esquerda, Maradona girou e, com dois toques, passou por ambos. Em progressão pela direita, decidiu driblar outro jogador para o meio, buscando espaço para o passe ou chute. Foi quando outro defensor tentou se antecipar e virou o quarto da fila. A esta altura, com Shilton saindo, Maradona poderia tentar a finalização. Mas, já que estava ali mesmo, decidiu imortalizar o goleiro com o quinto drible, a tempo de usar o bico da mesma perna esquerda para completar o que, na inesquecível narração de Luciano do Valle, só um replay poderia descrever. A Inglaterra diminuiu após a entrada de John Barnes (o do golaço no Maracanã), com gol de Lineker. Inclusive, quase empatou. Mas, mesmo sabendo que poderia se arrepender, Deus resolveu deixar o endiabrado seguir em frente.
Do outro lado das quartas-de-final, a cambaleante Alemanha Ocidental eliminou o anfitrião nos pênaltis. O México poderia ter ido mais longe se Hugo Sanchez tivesse rendido mais. Desacostumado com o calor, pouco fez. O melhor momento mexicano foi um voleio espetacular de Negrete contra a Bulgária* – lance ainda tido como um dos mais belos das Copas. Em tese, os alemães pouco poderia fazer contra a França de Platini, sobrevivente do melhor jogo da competição. Mas eis que o goleiro Batts, aquele que fechou o gol contra a seleção, resolveu fazer jus à fama de ponto fraco do time. O frango em falta de Brehme deu moral aos alemães para repetir o sucesso nas semifinais passadas. Os franceses criaram mais oportunidades, mas o goleiro Schumacher voltou a se consagrar contra os rivais vizinhos. No final, sem pernas, os favoritos viram o estreante Völler receber livre para o gol de misericórdia.
A outra semifinal seria a revanche da frustrante estreia argentina em 1982, quando os então campeões mundiais foram parados pelas defesas de Pfaff e começaram a defesa do título com derrota. Mas os tempos eram outros. Bilardo resolveu a desunião do grupo de forma simples: optou pelo lado de Maradona. As semifinais mostrariam o acerto. Confiantes, todos foram bem e proporcionaram desempenho ainda melhor de seu astro. Diego atingiu a perfeição flutuando entre as posições – ora armava, ora chegava como atacante. Foi numa destas infiltrações que rompeu a resistência belga com toque sutil sobre Pfaff. Os argentinos seguiram superiores e Maradona continuou com sede de vingança. Outro golaço costurando a defesa e jogadas que por pouco não transformaram a tensão em goleada. Argentina na final, com justiça. E um plus: Pelé já admitia que era Maradona, não Platini, o melhor do planeta.
A disputa do terceiro lugar foi entre a deprimida França e a Bélgica sonhando com uma medalha como prêmio de consolação por sua surpreendente campanha. Mas quem se importa com isso? Deu França na prorrogação e é o que tenho a dizer. Àquela altura, a pergunta de um milhão de dólares era sobre quem marcaria Maradona. Numa conversa por telefone com o amigo Carlos Alberto Torres, gravada na Globo, o técnico Beckenbauer desfez o mistério: o debutante Lothar Matthaus, meio-campista, sacrificaria seu talento em nome do bem comum alemão. E assim o fez, a ponto de irritar o 10 argentino, que levou amarelo com menos de vinte minutos. Mas, assim como Batts fechou o gol num jogo e entregou no outro, o goleiraço Schumacher saiu ridiculamente do gol e a cobrança de falta de Burruchaga chegou à cabeça de Brown. Só restava ao limitado time alemão o caminho da martelada pelo empate.
A vantagem de ter um gênio, mas não se limitar a “bola nele e se vira”, é que nem sempre o craque tem que fazer tudo. Maradona deu um dos passes em contragolpe, mas não a assistência concluída por Valdano. 2 a 0 contra uma equipe sem muito repertório. Não parecia difícil para uma das melhores defesas da competição. Mas não duvide da persistência germânica. Em dois escanteios, os atacantes Rummenigge (em pálida participação) e Völler empataram A torcida alemã já lembrava 1954, porém a costumeira frieza em campo virou afobação. Um bate-rebate no meio-campo chegou ao pé de Maradona, com Burruchaga e Valdano livres. Um toque simples, porém cirúrgico, bastou. Burruchaga recebeu e avançou. Ainda inseguro após a presepada inicial, Schumacher não saiu do gol. Foi só tocar de lado e celebrar. O México, que já fora da Espanha e do Brasil, agora tinha novo dono. O tango, quem diria, teve final feliz.
Maradona ainda seguiria como o melhor por alguns anos, mesmo que outros tivessem temporadas eventualmente mais expressivas – como os holandeses Gullit e Van Basten. Questionar seu status era ridículo. Pena que, longe dos olhos de todos, já se encontrava em processo de decadência pessoal pelo uso de cocaína, escancarado após 1990. Uma lástima. A partir daí, só vimos lampejos entre situações vexaminosas, como o doping de 1994. Fora a constrangedora passagem como técnico da seleção e as declarações que muitos jornalistas, por razões ideológicas e antipatia a Pelé, sempre minimizaram. O futebol argentino também sofreu com seu endeusamento – justíssimo, porém cultuado a ponto de virar pressão insana sobre todos os camisas 10 que viriam. Mas, se o mundo parasse em 1986, a ária final da ópera futebolística seria sua. A mais bela já executada num palco de Copa do Mundo.
FIM
Eles não foram campeões, mas não fizeram feio:
Enzo Scifo: o jovem belga foi a revelação da Copa e seria o principal de seu país por anos.
Gary Lineker: com seis gols, o centroavante inglês foi o artilheiro da Copa, um gol à frente de Maradona e Careca.
Igor Belanov: o bom atacante ucraniano foi destaque na primeira fase até a eliminação da URSS (da qual a Ucrânia fazia parte) para a Bélgica.
Rudi Völler: começou sua bela história na seleção, que culminaria com a revanche de 1990.
Ezaki Badou: o goleiro de Marrocos foi um dos responsáveis pelo primeiro lugar num grupo com Inglaterra, Portugal e Polônia. Só pararam em derrota por 1 a 0 contra a Alemanha Ocidental, quando fez uma defesa improvável contra Rummenigge.
Jean Tigana: para muitos, o pulmão francês fez uma Copa mais bem jogada que o craque Platini. Faltava genialidade, mas sabia jogar – ao contrário de volantes que pensam com as pernas.
*lembrada pelo desempenho em 1994, a Bulgária só veio a ganhar seu primeiro jogo justamente naquela edição. Em 1986, passou para as oitavas com uma derrota e dois empates, ficando entre os melhores terceiros colocados.
Leia também:
– A Copa que eu lembro – 1986 – Parte 1
– A Copa que eu lembro – 1986 – Parte 2 (os outros)
– A Copa que eu lembro – 1986 – Parte 3 (da superação às lágrimas, em quinhentos minutos)
Ótima essa série, parabéns aos envolvidos!!
Mais um ótimo artigo.
Essa “mano de Dios” é uma vergonha da história do futebol, esse Maradona deu esse exemplo terrível pro mundo!!!!! Jogou demais, mas não é melhor nem que o Messi!!!!!!!!
[…] – A Copa que eu lembro – 1986 – Parte 4 (se Deus é brasileiro, deu uma “mano” ao vizinho…) […]
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seu relato é maravilhoso. parabéns.