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Nos 50 anos do tricampeonato mundial, a seleção de 1970 se firmou como um orgulho e uma maldição. Orgulho, por motivos óbvios. Foi a consagração definitiva de Pelé, agora como líder do grupo e sem a lesão que o tirou de quase toda a Copa de 1962. Foi também a confirmação do nível extraordinário que o esporte das multidões produziu nos anos 1960 – e que não se repetiria na década seguinte, ao menos com o mesmo brilho. Mas, por outro lado, foi a deixa para dois males que assolam nossa visão futebolística até hoje: a arrogância ufanista e o saudosismo impiedoso com quem veio depois, sem poupar sequer os que levantaram a nova taça – a outra nós ganhamos em definitivo e deixamos roubarem.
A campanha do México mostrou um futebol técnica e taticamente adiantado. Para os padrões da época, um banho de dinamismo e equilíbrio. Mas o mundo seguiu girando e trocando experiências, enquanto o Brasil preferiu se fechar. Não tínhamos que aprender nada com ninguém, diziam. Mesmo os momentos de modernidade tiveram fontes internas. Testar novidades da Europa, ou mesmo dos vizinhos sul-americanos, era um sacrilégio. Técnico estrangeiro, nem se fala. Nem adiantava lembrar que o 4-2-4 de 1958 era baseado no trabalho do húngaro Bela Gutmann no São Paulo. Ganhamos porque com brasileiro não há quem possa. Simples assim. Os outros precisavam de táticas para obter o que o Brasil fazia batendo bola na rua. Com o êxodo dos brasileiros para o futebol europeu, surgiu até uma nova desculpa para as Copas perdidas: deviam ter levado só jogador daqui. Humildade à brasileira.
Mas, afinal, o Brasil ganhou mais duas Copas com titulares predominantemente do futebol europeu, certo? Nem tanto. Na fantasia de parte da crônica esportiva, o Brasil ainda é tri, não penta. Simplesmente porque não foi o penta, muito menos o tetra que sonhavam ver. A desordem cronológica se deve ao fato de que nenhum jogador encarnou a contrariedade com a vitória que Dunga. Nem a quantidade de desarmes passes certos, incluindo uma assistência a Romário, ou mesmo o pênalti que jogou o mundo nas costas de Baggio, aplacaram a frustração de vê-lo repetir o gesto de Carlos Alberto Torres. Pode-se dizer que as mágoas do próprio Dunga (incluindo o “fotografa essa p…” com a taça) não ajudaram muito, mas tampouco recontam quem iniciou a relação tormentosa. Restou a falácia atenuante de que Romário ganhou a Copa sozinho. Assim como os três Rs em 2002.
É difícil aceitar que, não só para o futebol brasileiro, o passado das Copas do Mundo será sempre mais bonito. Junta-se o saudosismo com uma dose de realidade. A Copa deixou de ser o suprassumo do futebol, há pelo menos duas décadas. Os clubes tomaram este papel. Primeiro, com a mudança de leis sobre estrangeiros, que permitiram a montagem de seleções mundiais. Segundo, porque os torneios de clubes incharam de tal forma que, quando chegam os torneios de seleções, os atletas estão desgastados e sem tempo para entrosar. Num confronto hipotético entre a campeã da Copa do Mundo com o vencedor da Champions League, este seria o favorito. Não teria como acontecer em 1970. Tanto pela qualidade técnica quanto pelos meses de preparação – no lugar de três semanas de treinamentos a conta-gotas, para não estourar os jogadores.
O efeito dos sonhos deste cinquentenário deveria ser louvar a seleção de 1970 pelo muitíssimo que significou, mas jogar fora o fardo que isso representa. Aceitar que temos não a copiar, mas aprender com o que é feito em outros lugares. Inclusive na parte técnica, já que faz muito tempo que não temos um meio-campista ou um centroavante entre os craques mundiais. Reconhecer que tivemos outras grandes seleções, algumas ganhando e outras perdendo. Os tempos de 1970 não voltam mais. Que bom que não voltam mais. Museus existem para ser visitados. Não habitados.

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, não resiste a um bom debate sobre esportes, de futebol a curling. São-paulino, é fundador e moderador do Fórum O Mais Querido (FOMQ). Não esperem ufanismos e clichês. Ele torce, mas não distorce.