Créditos da imagem: Montagem / No Ângulo
Desde que iniciei o trabalho de avaliação econômico-financeira no futebol, há cerca de 10 anos, me deparo com debates a respeito das dívidas dos clubes. No início dos trabalhos este era o tema mais importante e demandado por parte da imprensa. Hoje acompanhamos um debate mais amplo, sobre outros aspectos importantes das finanças do futebol, e isto é saudável e necessário. Entretanto, ainda há muito a se explorar em relação às dívidas.
Neste artigo explorarei o tema, apresentando alguns conceitos sobre endividamento e por que utilizar um deles.
Começando de algo bem básico, Dívida é uma obrigação que uma empresa ou indivíduo (ou o Estado) tem a pagar a outro. Estes indivíduos devem porque:
i) pediram emprestado e precisam retornar ao dono (um empréstimo);
ii) compraram algo a prazo (um empréstimo);
iii) investiram em algo que custa um valor acima das possibilidades, que dará retorno a longo prazo e que gerará valor no tempo, como um estádio ou centro de treinamento (um financiamento);
Outro conceito importante é o de Passivo, que em contabilidade significa “todas as obrigações que uma empresa, ou um clube no caso, tem com terceiros”. Dívidas. São as fontes de financiamentos dos ativos, ou também chamado Capital de Terceiros, que junto com o Capital Próprio (Patrimônio Líquido) financia os Ativos dos Clubes.
Vamos facilitar um pouco. Pense que você começou um clube hoje e para isso precisa contratar 22 atletas. Você tem 100 na sua conta (seu capital próprio) e esses atletas custam 250 (seu ativo). Para fechar esta conta e iniciar sua atividade você toma 100 em empréstimos junto a bancos e financia 50 das contratações junto aos clubes. Daí você terá:
Nesta conta bem simplória a dívida é de 150, representada pelo Passivo.
É desta maneira que muitos analistas calculam dívidas dos clubes. Utilizam tudo que está no Passivo e chama de Dívida. Daí, excluem alguns ativos, geralmente o dinheiro que está em Caixa e algumas Contas a Receber, e chamam de Dívida Líquida.
Não está errado. Conceitualmente mostrei que todos os Passivos são dívidas com terceiros e todas as dívidas devem ser pagas. Mas isto é Contabilidade. Sob o ponto de vista de Finanças entendo que devemos trabalhar um pouco as informações, tratando as informações e classificando-as conforme sua severidade. Isto significa que alguns passivos serão “deixados de lado”, seja porque são apenas registros contábeis sem efeito caixa – sem necessidade de haver saída de dinheiro para pagá-los – seja porque sua exigibilidade é menos natural.
Para facilitar o entendimento novamente vamos pegar as contas mais básicas de um balanço de clube de futebol.
• Fornecedores: empresas que prestam serviços ao clube
• Contas a pagar por aquisição de atletas: valores a pagar a clubes
• Empréstimos e Financiamentos: bancos e dívidas que cobram juros
• Impostos e Contribuições sociais: valores relacionados aos salários
• Obrigações trabalhistas e sociais: encargos trabalhistas
• Credores por participação em atletas: valores a pagar a terceiros (empresários) referentes a venda de atletas do clube
• Direitos de Imagem a Pagar: parcela equivalente a salários no futebol
• Provisão para Contingências: valores que o clube aponta que podem virar dívidas no futuro, geralmente fiscais
• Adiantamentos Recebidos: valores recebidos que serão pagos com performance (entrando em campo)
• Impostos e Contribuições a recolher: valores de dívidas fiscais parceladas (Profut, por exemplo)
Alguns clubes ainda incluem os valores a receber pelo contrato de TV e patrocínios, que contém contrapartida no ativo, chamadas de “Receitas a Realizar”. Ainda há quem inclua contas como “Direitos de Cessão de Exploração”, como o Internacional fez, que é um mero registro da cessão do Beira-Rio para o fundo que explora o estádio. O clube não paga nada por isso e a conta reduz conforme passam os anos do contrato.
Utilizando essas contas mais comuns nos clubes, o que realmente importa na hora de avaliar suas dívidas são aquelas que têm efeito caixa efetivamente, e que podem ser cobradas. Nesse sentido, utilizar contas de mero registro contábil não faz sentido. A conta do Internacional era de mais de R$ 300 milhões. Ou utilizar os Adiantamentos Recebidos, que serão pagos com a presença do clube em campo. Outra conta que não vejo necessidade em utilizar é a de Credores por Participação em Atletas, uma vez que o clube recebe e repassa automaticamente aos interessados.
A partir daí separo as Dívidas em 3 blocos:
OPERACIONAIS: todas as dívidas que estão associadas ao dia-a-dia dos clubes, à operação em si. São elas os Fornecedores, Contas a Pagar por Aquisição de Atletas, Impostos e Contribuições Sociais, Obrigações Trabalhistas e Sociais. Até 2017 deixava os Direitos de Imagem de forma, porque os clubes tinham que contabilizar o valor total no balanço. Como tem característica de salário, deveriam ser contabilizados apenas o valor devido no mês seguinte. A partir de 2018 será assim, então passaremos a considerar esta conta nas Dívidas Operacionais.
Normalmente essas contas, exceto dos valores a pagar a clubes, não entrariam em avaliação de dívidas nas corporações, a não ser em casos específicos, como setor de Varejo, onde os Fornecedores são fontes importantes de financiamento das operações. São passivos cotidianos, especialmente os relativos a encargos trabalhistas. Mas como os clubes têm histórico de atrasar encargos e salários, esta avaliação é importante, pois nos permite identificar clubes que estão com encargos atrasados. E um alerta: em Setembro/18 havia time grande com encargos atrasados.
FINANCEIRAS: são as dívidas bancárias e com terceiros que cobram juros, como presidentes, empresários, torcedores ilustres, que emprestam dinheiro aos clubes.
IMPOSTOS: são as dívidas com impostos, em renegociação ou já renegociados nos respectivos âmbitos, como o Profut e Ato Trabalhista do Rio de Janeiro. Incluo também, de forma conservadora, as Provisões para Contingências. Vale uma explicação antes.
Provisão para Contingências são registros contábeis de ações e questionamentos na Justiça sobre valores não recolhidos, geralmente impostos. Podem ser classificados segundo alguns critérios, mas de acordo com parecer jurídico no qual o clube se envolve, entre Remotos, Possíveis e Prováveis. Aos clubes e empresas devem registrar as perdas prováveis e aquelas possíveis onde haja razoável capacidade de avaliação do valor. Ou seja, só vão ao passivo aquelas que realmente devem virar dívida no futuro próximo. Por isso, antecipamos e incluímos nas dívidas com impostos.
Desta forma, daquele bloco inicial ficamos com os seguintes passivos:
• Fornecedores: empresas que prestam serviços ao clube
• Contas a pagar por aquisição de atletas: valores a pagar a clubes
• Impostos e Contribuições sociais: valores relacionados aos salários
• Obrigações trabalhistas e sociais: encargos trabalhistas
• Empréstimos e Financiamentos: bancos e dívidas que cobram juros
• Provisão para Contingências: valores que o clube aponta que podem virar dívidas no futuro, geralmente fiscais
• Impostos e Contribuições a recolher: valores de dívidas fiscais parceladas (Profut, por exemplo)
Isto é o que se chama de Dívida Bruta. Também podemos utilizar o conceito de Dívida Líquida, que é deduzindo ativos do valor de dívida. Por que fazemos isso? Porque há valor no ativo que será utilizado na gestão cotidiana quando virar caixa.
Hoje considero apenas os valores em Caixa como dedutores de dívida. Porque é o único com recebimento certo. Em finanças dizemos que “as dívidas são certas, mas os haveres são incertos”. Ou seja, tem que pagar, mas nunca há garantia de recebimento.
Aqui também estudo a possibilidade de alguns ajustes, especialmente após a nova norma da FIFA que atua diretamente punindo clubes que não paguem pela transferência de atletas. Há uma chance de que estes valores possam compor a Dívida Líquida em algum momento.
E este é um aspecto importante dos dados que utilizo. Não fico preso às minhas regras e convicções. Há que se ter bom senso e equilíbrio nas avaliações e sempre que houver fatos que justifiquem alterações na análise, fazê-las.
Esses conceitos fazem parte de regras de proteção utilizadas pelos financiadores do mercado corporativo de dívidas. Essas regras são chamadas de “covenants”. Esses “covenants” são obrigações às quais os devedores se comprometem em termos de manutenção de certos patamares financeiros, como limitações de dívidas e condições mínimas de liquidez, por exemplo.
O modelo europeu de Fair Play Financeiro utiliza certos “covenants” para monitorar os clubes, e sempre que são violados, os clubes sofrem sanções, assim como as empresas que violam essas obrigações contratuais também sofrem.
Isto é importante para dar sustentação à tese de uso de parte dos Passivos como indicadores de Dívidas. O mercado financeiro e de capitais também faz isso em suas operações, especialmente as de longo prazo. Preocupa-se com a capacidade de pagamento.
Exemplo
Um exemplo de por que não gosto de usar o Passivo total sem análise e ajustes devidos ocorreu no balancete do Flamengo de Setembro/18. Houve uma mudança contábil que fez com que o clube fizesse um ajuste no seu Patrimônio Líquido, Passivo e Ativo. As luvas recebidas pelo contrato de TV agora devem estar no Passivo como Adiantamento, e antes haviam entrado no Patrimônio Líquido, por serem uma Receita.
Esta tecnicalidade toda causou o seguinte efeito no balanço do clube: em Dezembro/17 os Passivos somavam R$ 534 milhões e em Setembro/18 passaram a somar R$ 604 milhões. Ou seja, R$ 70 milhões a mais. Isto significa aumento da Dívida? Não, claramente não. Mas quem usa o valor integral dos passivos encontrará este aumento.
Alavancagem
Outra coisa importante é o uso da Dívida como instrumento de análise. Sempre uso o seguinte exemplo: é melhor dever 500 ganhando 1.000 ou dever 1 milhão ganhando 10 milhões? Se analisarmos apenas o valor absoluto podemos incorrer em erros graves de avaliação. Este é o mal dos rankings, que fazem apenas compilação de dados para gerar o debate.
O ideal, portanto, é compararmos as Dívidas com algo. Com isto podemos avaliar o que em finanças corporativas se chama Alavancagem.
O termo se refere ao uso de capital de terceiros – como nós vimos, Dívidas – para turbinar a atividade de uma companhia, “alavancado-a” a um patamar mais alto. Isto tem custo e é importante avaliar o grau de alavancagem, que é quanto a empresa está devendo em relação a uma medida qualquer.
Algumas referências podem ser o Patrimônio Líquido, ou seja, quanto de capital de terceiros há acima do capital próprio. No futebol parece fazer pouco sentido, porque os clubes carregam patrimônios deteriorados pelos anos de problemas. Outra forma é fazer em relação às Receitas, mas eu não gosto muito porque causa uma sensação de que as receitas podem pagar a dívida, mas antes elas precisam servir custos e despesas. Comparar dívida com receita é apenas uma sensibilidade, pois dever mais de um faturamento é ruim, pois efetivamente vai sobrar pouco dinheiro para pagar esta dívida.
A comparação que mais me agrada é com os números de geração de caixa, que começam com o já costumeiro EBITDA (Resultado antes dos Juros, Depreciação e Amortização, em inglês) e que devem também ser feitos com o que se chama de Caixa das Atividades, que é o EBITDA deduzido de pagamentos de Profut e Investimentos em Atletas, bem como deduções de Adiantamentos de Anos anteriores.
Estes números indicam efetivamente quanto sobra da atividade para fazer frente às dívidas. Porque depois de fazer receitas e pagar custos e despesas, os clubes ainda têm a obrigação do Profut e quase que invariavelmente, fazem investimentos em atletas antes de pensarem em pagar dívidas e custos financeiros. Esta relação pra mim é fundamental, porque mostra se os clubes estão sendo geridos com uma visão de manutenção das estruturas e sustentabilidade ou se estão apenas olhando o ano corrente, esperando a próxima eleição.
E ainda há formas de se analisar estes dados. Primeiro podemos usar os dados totais e os recorrentes. Depois, em relação às dívidas, é preciso analisa-las de acordo com seu prazo médio, por exemplo, as dívidas de Profut podem ser elevadas, mas têm prazo médio de 10 anos, aproximadamente. Ou seja, mesmo que representem um número elevado na foto, no fluxo de caixa representa impacto menor. Isto significa que podemos fazer a conta de alavancagem com a dívida total, mas também usando apenas a de curto prazo.
Aqui temos um exemplo de Alavancagem consolidada (somada) dos 27 clubes de maior receita do país:
Obviamente é apenas um exercício, pois as gerações e dívidas precisam ser tratadas de forma individuais, e nos dois últimos anos as gerações de caixa de Flamengo e Palmeiras trazem os índices gerais para baixo. Mas é uma forma de mostrar-lhes como devem ser vistas as dívidas.
Em suma
Isso mostra quão complexo e profundo é o tema e quantas contas e avaliações precisam ser feitas por um gestor e pelos stakeholders para chegarmos em cenários corretos de avaliação.
Isto não significa em hipótese alguma que os analistas que façam de outro modo estejam errados. São critérios e maneiras diferentes de ver o tema. Prefiro desta forma, com profundidade, análise, tempo de resposta.
O tema é longo, técnico, mas acho interessante dividir e compartilhar esta forma de análises com vocês, torcedores.
Muito bom o texto. Obrigado.
Excelente!
[…] do artigo sobre as Dívidas, vamos para outro artigo técnico. São artigos mais chatos, eu sei, mas ajudam aos torcedores a […]
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