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A pior coisa que pode acontecer à boa discussão é ter maus debatedores. Estraga-se o tema pela mútua inaptidão para argumentos que saiam do rasinho. Foi o caso dos comentaristas Caio Ribeiro e Walter Casagrande Jr falando das declarações do dirigente Raí sobre o presidente Bolsonaro – em especial a sugestão de sua renúncia. Caio é um exemplo bem acabado do “não-me-comprometismo”, como anos pós-gramados escancaram. Casagrande é o desarticulado gente boa. Como a Dona Jura de O Clone e o seu “não é brinquedo, não!”, sabe-se de antemão que suas opiniões políticas terminarão com “democracia corintiana”. E só não diga amém quem tiver o malfadado “lugar de fala”.
De plano, cabe fazer uma distinção que há décadas passa batida. Na verdade, o que se batizou como “democracia” deveria ser considerada “gestão descentralizada”. A rigor, todo clube gerido conforme o estatuto dos sócios originários pode ser várias coisas, menos antidemocrático. Aliás, este é um motivo pelo qual o movimento gerou antipatia de outros torcedores – quando não corintianos que gostavam de gestões prévias. Então o resto era ditatorial? Não era e não é nada assim. O futebol brasileiro teve – e tem – seus caudilhos, mas não necessariamente porque os estatutos não foram democráticos. Justamente o contrário. Por estratagemas nada morais (não raro ilegais), distorceram a vontade estatutária. No rival corintiano do Morumbi, Juvenal Juvêncio tornou-se um ditador (mal) disfarçado. Marcelo Portugal Gouvêa, seu antecessor, nunca chegou perto disso.
Neste contexto, tendo a discussão de Caio e Casagrande chegado à gestão descentralizada corintiana, este criticou entrevista de outro dirigente tricolor. Diego Lugano mencionou que, em conversas com Émerson Leão (técnico que inclusive o firmou como titular no SPFC), ouviu sua já tradicional reserva contra o que chamavam de democracia. Leão atuou no Corinthians em 1983 e sustenta que era uma democracia de três pessoas. O simples fato de Lugano dar crédito a este entendimento foi, para Casagrande, coisa de “oportunista” – entre outros adjetivos. Nada diferente de um fiel fanático (e não me refiro a ser corintiano) amaldiçoando outrem por questionar o dogma de sua fé. Leão pode porque fez parte do time. Lugano, mesmo repetindo o que aquele disse, não pode. O ex-goleiro e ex-técnico conseguiu pontos para sua tese sem abrir a boca – ou por isso mesmo.
Mas o tema principal foi mesmo Raí. Irmão do maior ícone da gestão descentralizada corintiana, o gestor do São Paulo não se furta a opinar sobre política. No caso da Covid-19, foi indagado sobre os intentos de se retornar brevemente com o futebol. Disse que o SPFC é contra. Ainda dentro do tema, lamentou a postura da presidência da República contra o isolamento social. Foi quando a discordância extrapolou a pergunta e chegou à declaração sobre ser melhor que Bolsonaro deixe voluntariamente o governo. Era isso que Caio e Casagrande deveriam ter focado. Não é questão de poder ou não poder falar de política enquanto dirigente. Afinal, todo clube profissional tem interesses na situação estatal e seus reflexos em suas atividades. O que cabe indagar é: a opinião era sua ou do clube? Neste caso, estava autorizado a proferi-la naquele momento?
Não apenas Casagrande, mas os demais apoiadores de Raí pouco ligaram para a distinção. Mais valem a figura do criticado e seu posicionamento ideológico. Na imprensa esportiva brasileira, figuras da extrema direita são criticadas sem reservas, ressalvas ou eufemismos. Por questão de coerência, apoiam quem fizer críticas sem reservas, ressalvas ou eufemismos a estas mesmas figuras. Se for o inverso, aí literalmente muda de figura. Elogiar a ditadura de Pinochet no Chile é ser reacionário. Adorar a ditadura de Fidel Castro em Cuba é ser “consciente”. Há alguns anos, Raí foi aplaudido (inclusive por mim) quando pediu desculpas por atuar em amistoso na Chechênia, pois estava promovendo um ditador de direita. E se o jogo fosse em Havana? Receberia aplausos? Aliás, teria chegado a demonstrar o mínimo arrependimento. Talvez até emoldurasse a foto.
Não se mostrasse tão raso, Caio teria fechado a questão há muito tempo. Bastaria observar que Raí pode ser coerente ou contraditório, assim como todos nós. A vida traz questões em que, não afetando ninguém, dane-se se o sujeito não está sendo um poço de coerência. Raí tem o direito de falar em política enquanto dirigente, porque a política faz parte do nosso dia-a-dia e não existe norma legal ou funcional que a vede – ao contrário, por exemplo, dos limites que magistrados possuem por Lei e portaria. Mas Raí não tem o direito de expor um posicionamento seu, ainda mais tão drástico, numa ocasião na qual está falando em nome da pessoa jurídica que representa. A não ser que o São Paulo Futebol Clube, enquanto instituição, tenha firmado entendimento para que o presidente Bolsonaro deixe o cargo. Pelas reações internas, obviamente não é o caso.
Infelizmente, com a quarentena os debates esportivos se tornaram ainda mais prolixos e inúteis. Se faltou profundidade a Caio e Casagrande, os debatedores dos demais programas optaram pela falta de foco. Não é de interesse geral desenvolver debates objetivos e consistentes. Sem eventos a comentar, as pautas pedem e até exigem embromação. Cada qual com seu bordão. Só resta saber se, numa dessas, eles trocam as bolas. Caio falando na “democracia corintiana” e Casagrande fechando com “não é brinquedo, não!”.