Créditos da imagem: Reprodução / O Jogo
Novamente vou usar pauta alheia para tratar do tema gestão e finanças no futebol. Como estou envolvido em dois projetos importantes – o desenvolvimento do modelo brasileiro de Fair Play Financeiro e a atualização do relatório anual sobre as finanças dos clubes do Itaú BBA – tenho tido menos tempo para trazer alguns assuntos para o debate. Daí, quando vejo uma pauta bacana vou atrás de um tempo na agenda para explorar o tema.
O jornalista Rodrigo Capelo trouxe nesta semana uma entrevista interessantíssima com Jorge Rocha, que é Diretor Financeiro do FC Porto, de Portugal (veja aqui no link). Não vou replica-la ponto-a-ponto, pois ela é longa, mas absolutamente clara. O objetivo aqui é tratar alguns pontos levantados pelo Capelo e comentados pelo Rocha, e associá-los à realidade brasileira.
Competitividade, Modelo de Negócios e a realidade de um clube menor
Um dos temas mais interessantes que Jorge Rocha trouxe foi o do modelo de negócio do Porto. Clube de liga média europeia, com orçamento na casa dos € 150 milhões anuais, o clube fica financeiramente abaixo de toda a Premier League e dos principais clubes das outras 4 grandes ligas europeias (Alemanha, Itália, França e Espanha). Segundo o relatório Deloitte Money League, na temporada 17/18 o Porto não figura nem entre as 30 maiores receitas europeia, cujo número 30 inclusive é o Benfica com € 150,7 milhões.
Isto significa dizer que nas disputas de Champions League, onde invariavelmente está, seu nível de competitividade é bastante inferior em relação aos demais clubes com porte semelhante em suas ligas. Para poder competir de forma minimamente aceitável, o clube tinha duas opções: rasgar dinheiro e se afundar em prejuízos e dívidas, ou buscar um plano estratégico que trouxesse estabilidade e sustentabilidade financeira.
Como o Fair Play Financeiro trabalha para evitar opções como a primeira, os portugueses desenvolveram um modelo de negócios que lhes possibilita receitas adicionais e ajudam a manter o clube minimamente competitivo. Nada muito diferente dos brasileiros, o Porto virou uma indústria de compra-e-venda de atletas. Aproveita-se de estar na Europa e poder aplicar conceitos esportivos contemporâneos, de maneira que recebe atletas muitas vezes ainda em fase de desenvolvimento e os molda de forma a prepara-los para ligas maiores. Virou um entreposto de mão-de-obra.
Mesmo assim o clube já se viu em dificuldades recentes e foi sancionado pelo Fair Play Financeiro da UEFA, e agora está sob “intervenção” da entidade, a quem teve que apresentar um plano de recuperação e é monitorado de perto.
Vamos tentar fazer um paralelo com o futebol brasileiro.
No Brasil os clubes também usam da venda de atletas como parte da atividade. Mas a diferença é clara: enquanto o Porto se aproveita dos ganhos para reforçar a equipe e se manter competitivo, no Brasil os clubes ainda vendem atletas para pagar as contas atrasadas. Então, temos um problema claro de preço: quem vende por necessidade tem menos margem de negociação, e deixa parte do dinheiro nas mãos de quem está comprando nossos atletas.
Mesmo que os Brasileiros tenham conseguido bons valores como os obtidos com Vinícius Jr, Paquetá, Rodrygo e Neres, ainda assim na maior parte das vezes o que recebem é uma fração do que valerão esses atletas num futuro próximo. Entra também nessa conta a questão da adaptação, pois os clubes das grandes ligas preferem pagar mais caro por um atleta pronto que investir em jovens com deficiência tática e risco de adaptação. Faz parte do negócio.
Jorge Rocha fala sobre as dificuldades de competitividade geradas pelo controle financeiro feito pela UEFA e pelas Federações Nacionais. É um fato e uma necessidade. Controles são fundamentais para garantir a estabilidade da indústria. Não é aceitável que clubes gastem o que não têm e coloquem em risco toda a cadeia de negócios: atletas, fornecedores, outros clubes. E isso também impede investimentos em estrutura, o que significa piores condições para os torcedores.
No final acaba gerando distanciamento e concentração. Mas futebol não é casa de caridade. Quando clubes gastam o que não têm, alguém fica sem receber. Como um governo que precisa se endividar ou mesmo você torcedor, que quando se aperta precisa levantar algum empréstimo. Só que a história mostra que você tem que pagar, mas os clubes empurravam com a barriga e isso virava uma bola de neve que só tirava valor da indústria. Não é por acaso que após a Lei Bosman e com o início do Fair Play Financeiro o futebol na Europa deu enorme salto de qualidade técnica e enriquecimento. Mesmo com este desequilíbrio, nada impediu o Leicester vencer a Premier League nem a Roma chegar às semifinais da UCL da temporada passada.
No Brasil este cenário se avizinha. Os clubes, conforme mostro anualmente nos relatórios do Itaú BBA, são incapazes de sozinhos se organizarem e chegarem ao equilíbrio, com as exceções tão honrosas que já ficaram óbvias. Sem regras e controles o futebol perde valor.
Controle Acionário: Clubes S/A
Um dos temas abordado na conversa entre Rodrigo Capelo e Jorge Rocha foi o fato dos clubes portugueses, em destaque o Porto, terem donos. É utilizada uma estrutura legal chamada SAD, que permite ao clube ter ações em bolsa, inclusive. Segundo Rocha, isso traz transparência, governança e garante credibilidade aos clubes. Desta forma, aumenta a chance da entrada de mais dinheiro, seja via patrocínios tradicionais, seja porque é possível parcerias com patrocinadores e mesmo maior capacidade de se financiar.
Este modelo permite ao Porto captar recursos junto a seus torcedores, transformando esses em banco. Desta forma, no lugar de deixar o dinheiro em aplicações que rendem perto de 0,5% ao ano, os portugueses podem aplicar recursos em títulos de dívida dos clubes, que pagam até 7,5% ao ano. Como os clubes são controlados pelo Fair Play Financeiro e transparentes a ponto de publicar números com regularidade de empresa de capital aberto, o torcedor se sente seguro a aplicar seu dinheiro no futebol.
Já no Brasil, o que vemos é ainda um modelo associativo que em nada tem ajudado os clubes a se desenvolverem. Modelos políticos que possibilitam pouco planejamento e que não garantem estabilidade que um negócio que busca a sustentabilidade precisa.
O Futebol Português pode ser uma referência para o Brasil?
Pode, sem dúvida. Mas primeiro precisamos de humildade. Sempre olhamos as grandes ligas como exemplo. Sempre observamos o que fazem Real Madrid, Barcelona, Juventus, Liverpool. Esses são nosso benchmark. Mas estamos errados. Estamos sonhando em dirigir Ferraris quando vivemos de usar patinetes alugados nas esquinas.
Enquanto nos inspiramos numa realidade muito distante, esquecemos da máxima óbvia de que uma caminhada se inicia com o primeiro passo. E o primeiro passo é olhar o que clubes como o Porto estão fazendo para serem relevantes na Europa e usar seus modelos como início de caminhada.
Futebol Empresa, equilíbrio financeiro, planejamento, desenvolvimento esportivo (tática e formação de atletas!) e modelo de negócios compatível com nossa realidade. Esse é o primeiro passo. Mas com a devida atenção, porque o Brasil não é Portugal. Se somos muitas vezes maiores que nossos descobridores, carregamos os riscos de um país emergente que se traduz numa palavra: volatilidade.
Enquanto Portugal vive numa região que cresce pouco, mas tem renda maior que o Brasil e estabilidade de moeda e inflação, o Brasil vive seus dilemas econômicos que fazem o câmbio flutuar 20% num ano, a inflação saltar de 2% ao ano para 10% ao ano. Estamos mais suscetíveis a variações significativas de PIB e renda. Ou seja, ainda que façamos nossa lição de casa na indústria, há que se contar com boas gestões econômicas para que o ciclo esteja completo.
Daí, temos que voltar a lembrar que é um passo de cada vez e sem uma visão quixotesca da realidade. Se tudo der certo, se seguirmos os bons e corretos exemplos, se a economia ajudar, talvez em algum momento possamos ter uma indústria do futebol que seja capaz de apresentar a qualidade que todos queremos fora de campo revertendo em boas partidas quando a bola rola.